“Quando eu me chamar saudade” é um dos
maiores sambas de todos os tempos, composição de Nelson Cavaquinho e
Guilherme de Brito. Numa de suas encorpadas estrofes, manda o recado
direto, sem floreios: “ Me dê as flores em vida/o carinho, a
mão amiga/para aliviar meus ais/depois que eu me chamar saudade/não
preciso de vaidade/quero preces e nada mais”.
Neste – e em todos os antecessores – Dia de Finados, a
mente viaja, busca o porto da memória, tenta recuperar e sintonizar os
sons, as imagens, os momentos inesquecíveis vividos com as pessoas
queridas que não mais estão neste plano em que o ciclo diário é de vinte
e quatro horas.
Pais e parentes próximos que tiveram fundamental
participação na construção dos nossos valores, hábitos e posturas,
professores que nos ajudaram a decifrar os caminhos a seguir em busca do
conhecimento e discernimento – das ciências e das coisas – além dos
vizinhos e amigos que marcaram suas presenças em situações inesperadas,
decisivas e inadiáveis, formam o rol, maior ou menor, das personalidades
que eternamente carregaremos em nossa travessia dos cotidianos, como um
estandarte abrindo as alas da história de cada um a ser escrita e
contada, e que, conforme recomendam Nelson Cavaquinho e Guilherme de
Brito, oportunamente ter reconhecidas suas importâncias e lhes ofertar
flores em vida, algumas em forma de ramalhetes de atitudes do bem,
outras, solitárias mas também importantes decisões puntuais, com mais ou
menos perfume, mais ou menos beleza, dependendo da calibração estética e
ética de quem as oferta.
Saudade…Palavra que segundo muitos só tem significado
na língua portuguesa. Será que ela nos pertence, nos é exclusiva?…Neste
mundo contemporâneo, globalizado, em que “a toda hora rola uma
história, e é preciso ficar atento”, conforme sintetizara Paulinho da
Viola em 1.982, bem antes do rótulo ditatorial da era atual da notícia
em tempo real, talvez não só nos países de língua portuguesa como também
em todos os demais, a saudade que se globalizou tende a desaparecer. O
pragmatismo – que deveria ser rebatizado de pragamatismo – frio
e calculista, do mundo atual, direciona as relações profissionais e
começa, perigosamente, a permear para as relações pessoais, a esfriar e
estigmatizar as relações familiares.
Pais/parentes próximos e filhos…Relação modificada na
medida em que os primeiros precisam sair de casa para garantir o
investimento no aprendizado de conteúdos – pragmático, pelo sistema
educacional vigente – dos beneficiários, e via de regra, tentam
compensar o tempo indisponibilizado com bônus tipo ipods/ipads/tablets e
outros apetrechos do mundo virtual.
Professores e alunos…Relação modificada na medida em que
os primeiros precisam ser sempre politicamente corretos, evitar um não
constrangedor que imediatamente seria traduzido por builing pelos
aprendizes que se julgam perseguidos, já que o sistema educacional os
conduziram à categoria de clientes, e, convenhamos, cliente sempre tem
razão.
Vizinhos…Em prédios de apartamentos e condomínios
verticais/horizontais, não se faz lá muita questão de se construir novas
amizades atualmente. Todos parecem ter pressa em abrir a porta e
imediatamente fechá-la, sem paciência ou vontade para trocar idéias,
contar uma piada, subverter a lógica estanque dos compromissos, na
tentativa de diminuir o tempo perdido para o sistema de trabalho; nas
casas dos quarteirões de ruas e avenidas convencionais, muitas delas já
saem no projeto com cercas elétricas e câmeras de segurança acopladas
aos portões, inviabilizando as cadeiras nas calçadas, já que não se
conhece o vizinho, sabe-se lá seu passado, melhor se precaver.
Amigos…Bem, esta é a palavra mágica…Que podem ser os
próprios pais, os parentes próximos, os professores, os vizinhos…Colegas
de balada são só colegas, amigo é uma outra categoria, que se desdobra
para compreender, ajudar, se posicionar num momento difícil…Quem sabe
se, esta sociedade, cada vez mais individualizada dentro dos carros de
IPI barateados – e mais longe das calçadas, cada vez mais dentro dos
computadores do mundo virtual – e mais longe dos muros/grades/cercas das
vizinhanças, cada vez mais menosprezando o trabalho professoral – e se
rendendo às maravilhas do Tio Google (essa é tua, Rodolfo), de repente,
num choque apocalíptico, redescubra na simplicidade de um aperto de
mão, de um abraço e de um sorriso franco, o significado da palavra amigo
e, assim, lhes ofertar, espontaneamente, as flores, ainda em vida.