OS BOLINHOS DE BACALHAIS

“Seo” Sábato é um pacato morador da região central da cidade. Aposentado do ofício – empresário do ramo frigorífico – por mais de cinqüenta anos sustentou sua vida e seus sonhos por entre peças de bovinos, suínos, aves e peixes frescos(categoria, esta última, da qual se autointitula especialista) , e, hoje, se dedica aos netos e esposa, em rotina bem desacelerada, com hábitos quase que totalmente previsíveis, aos quais incorporou o de fiscal de quarteirão.
Pessoa simpática, apesar do sorriso econômico, guarda em seu vocabulário várias expressões idiomáticas do Vêneto, região italiana de seus ascendentes, algumas filosóficas, outras com teor macarrônico, as quais sempre finalizam algum diálogo, pois na lida das situações a sua palavra tem que ser a última, independente do assunto em foco, entendedor de todos os temas contemporâneos, vivenciados ou não, já que seus cabelos brancos e sua franzida testa se impõem a qualquer réplica.
No entorno de sua vizinhança, antes, preponderantemente residencial, com o passar dos anos alguns estabelecimentos comerciais foram substituindo os velhos casarões, remodelando a arquitetura local e oferecendo, em leque variado, opções de lazer, entretenimento e consumo de bens de primeira necessidade, como pães, roupas e cervejas estupidamente geladas.
Nesta última classe listada, vários bares de maior ou menor porte ali se concentram, alguns com opções de bolachas com validade vencida, salsichas de vidro e geléia bicolor, outros com máquinas caça-níqueis, dominó e jogo de bicho, e, como exceção, há um deles, que se diferencia por porções especiais de petiscos e música popular brasileira de qualidade executada ao vivo, mensalmente, com volume controlado, sem muitos decibéis, e sempre respeitando o horário do silêncio das 22 horas.
Empossado que foi como fiscal do quarteirão, escolhido por unanimidade sem ter havido uma mísera reunião, encarando sua nova missão como um típico síndico sisudo dos condomínios de segurança máxima que caracterizam estes tempos pós-modernos, “seo” Sábato pegou verdadeira “escrita” com o bar musical, se posicionando, mensalmente, de plantão, desde 21h30, próximo da esquina de onde emana o som dos violões e percussões, a despeito de perder o imperdível capítulo da novela das nove, seja a que esteja por terminar, seja a que está por começar, não sem antes escalar a esposa para prestar total atenção a fim de lhe reproduzir até os comerciais dos intervalos novelescos.
Logo no primeiro mês da cantoria, 22h01 a “radiopatrulha” aportou no bar para acabar com a “vagabundagem que perturba o sono coletivo”, como relatara o glorioso fiscal em telefonema ao 190; no mês seguinte, coincidindo com os últimos capítulos da novela, espertamente adiantou seu Mondaine e às 21h55 a PM já rondava e determinava o crepúsculo sonoro do botequim, para desespero do proprietário Morreus, que, sem saber o que argumentar, encerrou a roda, não sem antes oferecer uma porção especial aos fardados da noite para se quebrar o gelo e tentar equilibrar a situação.
No terceiro mês, se aproximando o sábado da cantoria, para a surpresa do Morreus, fez-lhe uma inesperada visita o xerife Sábato, todo polido e afável ao dirigir-lhe a palavra, mesmo se sabendo de que o barista já sabia das suas delações junto à PM. Usando de estratégia politicamente correta, convidou o fiscal do quarteirão para saborear uma breja trincando, a qual foi refugada de pronto devido ser hipertenso o visitante, resposta que tornou o clima novamente hipertenso…Tensão esta que foi quebrada pelo próprio fiscal, sem rodeios, ao comentar que fora muito elogiada pelo sargento a porção servida na última batida do mês anterior…Gargalhadas de alívio, Morreus, semblante mais leve, imediatamente ordenou a cozinha a preparar a tal elogiada porção, constante no cardápio como “bolinhos de bacalhais”.
Ao proferir o nome da porção pro cozinheiro, de imediato nosso síndico interveio: “não seriam bolinhos de bacalhau”?, seguro de sua colocação. Morreus, sem perder a chance, também de pronto emendou: “não, são bolinhos de bacalhais mesmo”, e explicou ao especialista em peixes que bacalhai é uma espécie de rio que foi recém- descoberta pelos piscicultores, e que habita a bacia do Mogi-Guaçu.
Sentindo a segurança da resposta obtida, Sábato replicou, ao experimentar o primeiro de muitos que deglutiu :”realmente, desconheço este sabor, que textura, que maravilha”, rasgando-se em elogios, abraçando o proprietário e prometendo que dali pra frente, nos sábados, não mais atrapalharia a música, no que Morreus correspondeu- lhe na pinta, prometendo que presentearia em todos os sábados musicais uma porção de bolinhos de bacalhais em domicílio…Estava selada a paz no quarteirão, a música popular brasileira triunfara, graças à porção de merluza congelada salgada, rebatizada de bacalhai…