EU NÃO SOU SANTO…

  “Se eu fosse santo estava no altar/um olho no padre e o outro na missa/só dando colher de chá(…)”, entre outros versos de “Eu não sou santo”, cantava Bezerra da Silva até pouco antes de se ir daqui em 2.005, quando, às vésperas de sua partida, reordenou a cartilha da fé e se tornou evangélico.
De que santo o Bezerra estaria falando nunca se descobriu e, convenhamos, não faria a menor diferença, pois a mensagem independe de rótulos, ele, como santo, iria ajudar os pobres e oprimidos, como seus parceiros habitantes das favelas fluminenses; o curioso de sua história é que ele foi batizado na igreja católica onde nasceu, Pernambuco, depois frequentou terreiros de candomblé quando chegou ao Rio de Janeiro, inclusive gravando outros versos como “não é fé que ele tem/é simplesmente a febre do ouro/custa caro a palavra de Deus/o pastor chega pobre e arruma tesouro(…)”, em “Pastor trambiqueiro”, samba no qual, claramente, a sua metralhadora verbal se direcionava aos pastores de algumas igrejas evangélicas, seu endereço paradoxal ao final da vida.
Assim é o ser humano, em sua maioria imprevisível, surpreendente e contraditório, ora defendendo suas convicções, ora se prostrando às condições do sistema e as jogando no lixo, como os livros de sociologia do ex-presidente FHC em sua campanha eleitoral para reeleição em 1.998. Ainda bem que isso se restringe aos seres humanos, “não circunscreve” os representantes mais próximos de Deus dentro da hierarquia católica, a julgar a fervorosa performance do novo Papa em sua passagem pelo Brasil semana passada.
Pessoa simpática o Jorge Bergoglio, sempre afável com os menos favorecidos, atencioso com crianças e idosos, apregoando a Igreja a se aproximar e se instalar pra valer nas periferias, como na favela de Manguinhos por ele visitada na capital carioca, quando notou que em menos de 400m da extensão de seus empoeirados quarteirões há muitos e diferentes templos evangélicos fazendo a cabeça da rapaziada (e nenhuma capela católica por lá).
Já o Papa Francisco – personagem de Jorge Bergoglio e acima do estágio de simples ser humano –  como bem escrevera recentemente o jornalista Clovis Rossi, ainda carece de “substância”, pois, entre outras pérolas paradoxais – que para muitos hipnotizados pelo seu carisma nada perceberam – tascou em um de seus discursos que a juventude deveria lutar por outros valores que não os objetos mais almejados pelo capitalismo como  “poder e dinheiro”, esquecendo-se de que o Vaticano, por ele representado, só se estabeleceu da forma como hoje se encontra – instalações suntuosas, 44 alqueires dentro de Roma – a partir desses valores por ele refutados.
Dentro do estado laico em que vivemos, o exercício de se buscar a verdade, a coerência e a harmonia social independe da seita ou fé doutrinal – inclusive a ausência de uma, como no caso do brilhante escritor português e Nobel de literatura José Saramago –  às quais se liga o cidadão. Creio que não precisamos de nenhum Santo, como cantara o Bezerra da Silva, para dar jeito nas coisas, bastam governantes decentes, éticos e compromissados com as suas promessas de campanha e, claro, o cidadão fazendo também a sua parte; da mesma forma, creio que não precisamos de nenhum Papa que nos diga para fugir das tentações do poder e do dinheiro, a menos que, em caráter de urgência, a pomposa e ortodoxa Cúria Romana declare que os bens do Vaticano estarão disponíveis para serem distribuídos pela ONU, prioritariamente para as nações que sofreram as colonizações dos “impérios romanos do ocidente”… Aí não seria paradoxo, seria um grande sonho realizado…