Delcio Carvalho nos deixou, muito
antes do combinado. Foi embora terça-feira da semana passada, sem ao
menos se despedir da forma usual, com um forte aperto de mão, sorriso
escancarado no rosto e aquele brilho dos iluminados no olhar.
Como matriz de uma maneira peculiar de escrever letras para as
belíssimas melodias de Dona Ivone Lara, ou dividir responsabilidades
musicais com outros parceiros menos frequentes, além de se aventurar a
compor palavras e sons de maneira solitária, o cidadão de Campos – ao
norte do Estado do Rio de Janeiro – conterrâneo e contemporâneo de outra
lenda do samba, Roberto Ribeiro, nosso grande amigo Delcio foi daqui
para uma muito melhor.
Humilde – na infância chegou a cortar cana – estava sempre solícito a
um bom papo, a colaborar com alguém e, claro, pronto para um novo show
ou um novo trabalho, independente se o cachê seria bom ou não, se sua
agenda comportava ele dizia presente. Lembro-me do dia em que pude
assistir um primeiro show dele, 1.998, no Sesc Ipiranga, em São Paulo,
em companhia de outro grande amigo, o Pipo. Ao final, fotos e autógrafos
de praxe, e, na despedida, lhe prometi que iria trazê-lo pra Araraquara
fazer um show, já que nunca havia visitado nossa cidade até então.
Demorou um pouco, mas a batalha surtiu efeito e, em 2.005, lá veio o
Delcio – e sua produtora e faz-tudo Bertha Nuttels, jornalista e
adorável pessoa – para dois shows em nossa região, aqui e em Ribeirão
Preto, num projeto chamado “Essa história dá samba”, nas respectivas
unidades dos Sescs. Lembro-me de quando foi montar o repertório, fiz a
“exigência” de estar nele contido “Nas sombras da vida”, mais uma
belíssima composição em parceria com Dona Ivone, a qual ele nem se
lembrava mais, pois constou do primeiro LP da grande dama do samba,
lançado em 1.976. Contornado o problema com audição aqui em casa em
pick-up, ficou feliz de saber que existia muita gente por nossas bandas
ligada em samba e mais, que acompanhava a sua obra, magnífica por sinal,
não só pelas parcerias com D.Ivone, mas também seus trabalhos autorais,
como “Afinal” e “Profissão Compositor”, entre outros.
Mais recentemente, 2.011, esteve novamente nos visitando, quando do
lançamento de meu segundo CD autoral “Elos do Samba”, no qual ele, de
forma belíssima, interpretou “Serenidade”, samba que compus justamente
para homenagear a dupla Ivone&Delcio. Emoção no ar, ao lembrar que
no dia em que estivemos no Rio para ele – além de Monarco, Luiz Grande,
Zé Luiz do Imperio Serrano e Wilson Moreira – colocarem vozes nas bases
gravadas em estúdio paulistano, ele me mostrou, orgulhoso, ao tirar da
sua bolsa um tocador de CD com a guia dessa música com minha voz, música
que disse gostaria de ter feito.
No dia seguinte ao show, ao levarmos ao aeroporto de Ribeirão Preto
para retorno ao Rio, quando desceu do carro me entregou uma carta, que
continha, além dos agradecimentos (nós é que estávamos eternamente
gratos por ele ter topado vir cantar no lançamento do disco) uma letra, a
qual pediu para que colocasse melodia. Se intitulava “Morada da
Alegria”, bela e espontânea homenagem à nossa cidade, à acolhida que
tiveram ele e Bertha, aos bons momentos que aqui passaram.
Muita responsabilidade pra mim, pensei…De repente, um dos maiorais do
samba brasileiro me oferecendo parceria, parecia até um sonho. Confesso
que comecei, parei, refiz uma parte, infelizmente não terminei, não a
tempo de mostrar a ele. Tenho esta dívida eterna para com o Delcio, que,
nos versos finais, escrevera: “(…)Até hoje me abraça/quando o sol vem
clareando/ao deixar sua morada/é teu vulto me abraçando/é tesouro, joia
rara/ e a luz deste meu canto é teu manto, Araraquara”. Espero que um
dia consiga terminar a melodia, que sua luz me ilumine, aí de cima,
compadre Delcio Carvalho.