NA PAULISTA OS FARÓIS NÃO VÃO ABRIR

Eduardo Gudin, grande sambista e compositor da Paulicéia, bastante arredio aos holofotes mas sempre presente quando o assunto é futebol – corinthiano de boa cepa – ou quando se fala em harmonia, base do tratamento que dá às suas belíssimas obras musicais como “Veneno”-  maravilhosamente eternizada pela voz da cantora Márcia  –  “Ainda mais”, esta em parceria com Paulinho da Viola, que demorou onze anos para ficar pronta – ou “Paulista”, samba canção primoroso forjado junto a José Carlos Costa Netto e cantado por Luis Bastos, no inesquecível disco em que apresentou seu acompanhamento vocal/instrumental ao qual deu o tratamento de grupo, nomeado “Notícias dum Brasil”, onde debutava a grandiosa voz de Mônica Salmaso.      
Me lembrei deste último samba citado quando preparava a volta de Sampa à terrinha na noite de quinta-feira da semana que passou. Em sua abertura, o poeta entoa :”Na Paulista os faróis já vão abrir(…)”. Mas não havia como. Alojado entre a mais famosa avenida paulistana e o centro da São João com a Ipiranga, abri a janela e vi uma tropa de choque se perfilando no alto da Rua Augusta, com blindados, cavalaria e infantaria formando pelotão compacto. Subi o foco para os céus e identifiquei helicópteros da Polícia Militar e das redes de televisão, ouvindo, de pontos mais distantes, estampidos que soavam como bombas e balas.
Liguei a TV, sintonizei o primeiro telejornal que consegui. Narrativas que mais se adequavam a um jogo de rugby, em que a esquadra dos policiais se engalfinhava com os manifestantes do movimento Passe Livre, estes, após se reunirem defronte à sede da Prefeitura de São Paulo, tomaram rumo sentido Avenida Paulista, palco rotulado pela maioria  como o palanque público de todos os eventos mais importantes da cidade, como o show da Virada de Ano, a São Silvestre ou das comemorações dos títulos esportivos pelos clubes locais.         
Pra quem conhece um pouco São Paulo, os principais corredores que fazem a ligação centro-Paulista são as ruas da Consolação e Augusta, esta, vizinha do prédio onde me alojo semanalmente. Voltei pra janela, os estampidos continuavam – e mais próximos – as ruas transversais servindo de atalhos/rotas alternativas dos manifestantes para tentar driblar o ferrolho policial a fim de conseguirem chegar à Paulista, que nesse cenário já se encontrava completamente interrompida em seu tráfego, agora substituído por viaturas e postos de comando militar.
Um olho no peixe – a janela – e o outro no gato – a televisão – que encenava a Avenida Paulista com seus faróis em amarelo piscante, como se oito e meia fosse meia-noite, sirenes tocando sem parar, e a voz do locutor sensacionalista, de olho na audiência, dizendo que o “cenário era de guerra”. 
E talvez fosse mesmo. Guerra que se estabeleceu porque os manifestantes deveriam ter sido mais claros e dizer que o foco daquele movimento não era só os tais R$ 0,20 de aumento na tarifa dos transportes coletivos, mas, principalmente, as péssimas condições do transporte, e da saúde, e da educação, e das más gestões que queimam dinheiro público; guerra que se estabeleceu porque os policiais não estão preparados para apenas supervisionar e proteger os bens públicos e não atacar os manifestantes com sprays de pimenta, bombas de gás lacrimogênio e balas de borracha. Alguns irão lembrar que houve depredações ao patrimônio público – sim, com certeza há vândalos no meio dos manifestantes – e, portanto, os policiais teriam que reagir, mas, ao que nos chega de notícias, aberrações como jornalistas feridos nos olhos por balas de borracha indica o despreparo, já que eles não distinguiram vândalos de jornalistas.
Triste país, que, no meio de manifestações em várias capitais, unidas pelas redes sociais tal a Primavera Árabe (seria o Inverno Tropical?), tenta jogar para debaixo do tapete suas deficiências estruturais para enaltecer a Copa das Confederações. Não há poeta que consiga se inspirar para compor nessa atmosfera. Nem mesmo o Gudin, que em 1985, junto com o fiel parceiro Costa Netto lançou, pela potente voz de Leila Pinheiro, a emblemática “Verde”, época das Diretas Já, que finalizava: “(…)verdejantes tempos/mudança dos ventos no meu coração”. Gudin, hoje os faróis não vão abrir. Estão no amarelo piscante, muito mais para o vermelho do que para o verde da Leila Pinheiro…