O samba do chico do couro

Francisco de Freitas, vulgo Chico do Couro, acabou de nos deixar, antes do tempo, como sempre fazem os amigos egoístas.
Figura de trato fácil, alegre, nem sempre correspondendo teoria com prática, mas pessoa da qual se faz amizade rapidamente; por falar em rapidez, nem sempre a mesma transparecia quando o assunto era o apronto de um serviço seu envolvendo couros…Para não se perder a amizade, toda vez que levava um objeto para ser consertado pelo Chico, o melhor era ter um de reserva para não pressioná-lo com relação ao dia da entrega, que sempre era adiado, uma vez devido ao câmbio flutuante do dólar, outra vez devido ao surto de dengue ou por causa da greve dos metroviários de São Paulo…Sempre havia uma justificativa injustificável, inusitada, que nos impedia do aborrecimento, pois a gargalhada vinha antes da impaciência com tão criativa resposta.
Chico era um cara pouco mais velho que eu e que também gostava do samba. Em minha adolescência, lembro-me dele na noite araraquarense com seu inseparável cavaquinho. Mandava sempre bom repertório, desde Cartola até Almir Guineto, isso no final da década de 1.980, quando firmamos nossa amizade, no extinto Bar do Belão. Dono de uma característica ímpar, ao se esquecer de algum verso durante a interpretação não se apertava e, de pronto, emendava outro verso com a mesma métrica, fonética e rima, com o detalhe de que o mesmo ficava completamente desconexo do sentido da música, mas que passava em branco para os menos atentos.
Participamos juntos de muitos eventos ligados ao samba, desde os tempos da curta e saudosa escola de samba do Clube Náutico, idealizada pelo Tom, até a época do Clube do Samba e posterior Apoteose, o Bar do Lupa , no bairro do Carmo; aliás, entre o fim do Clube do Samba e o nascimento do Apoteose, criamos a prática de nos reunirmos para um feijão gordo com samba em sua oficina do couro, na baixada da Avenida Bandeirantes, prática que outros amigos perpetraram até pouco antes de sua despedida.
Chico do Couro(ou Chico Café, corruptela de café com leite, devido às suas peripécias com as rimas, nem sempre ricas), você abusou, meu amigo, como cantavam Antonio Carlos e Jocafi. Abusou da fase líquida, na tentativa, talvez, de, em se fazendo essa opção, pudesse se esquecer da fase sólida da vida, dura, injusta, como as vezes transparece para todos nós, meu velho. Mas quem sou eu aqui para julgar, longe disso. Estou apenas lamentando sua ausência, pois agora sei que teremos um amigo a menos telefonando aos sábados durante a apresentação de nosso programa de rádio para pedir um samba ou simplesmente trocarmos algumas palavras, pois a amizade sempre exige que os amigos se encontrem…Até um dia, então, Chico, meu amigo…