São Pedro colaborou, resolveu deixar o sol brilhar, espantando as
negras nuvens que reinavam desde a quinta-feira. A cerveja estava
gelada, no ponto, os petiscos já desfilavam nas mesas daqueles que não
quiseram correr o risco e chegaram mais cedo, pessoas da primeira,
segunda e terceira idades marcando presença, algumas nas calçadas,
outras no balcão e tantas outras se posicionando no entorno da roda,
meio elipsoidal, que ia se desenhando a partir das caixas acústicas
básicas em seus focos, fazendo uma órbita na qual se penduravam o surdo,
o cavaquinho, o violão de 6 cordas, o violão de 7 cordas, a flauta
transversal, o pandeiro, o tamborim, o agogô, o reco-reco e o rebolo,
notando-se ali quatro gerações de sambistas, dos dezoito aos sessenta e
cinco anos (excluindo o Salomão Alves, naturalmente).
Clima de total descontração, assuntos desconexos na
preleção preliminar – desde os crimes encachoeirados se descortinando no
cerrado brasiliense até a veemente manchete proposta por um famoso
jornalista local sobre o antiecológico surdista que, além de pescar na
piracema, agora decidiu caçar capivaras para diminuir a conta do açougue
– passando pela afinação das cordas e uma primeira canção ecoando pra
se regular o som, nem alto, nem baixo, apenas no volume suficiente para
se entrar em ressonância com o ritmo binário coronariano dos presentes.
Lá pelas 17:30, finalmente, o bicho pegou. Um, dois,
trezentos e noventa e três sambas – e chorinhos, brilhantemente
executados pela dupla sancarlense Renan da flauta e Dudu Setecordas –
foram se sucedendo, sem respeitar a mínima ordem, que apesar da desordem
se ordenavam e se dedicavam aos grandes bambas que já se foram e aos
outros bambas que ainda colocam a cara pra bater contra a indústria
fonográfica, compondo sambas em que há a perfeita sintonia entre letra,
melodia e ritmo, produzindo pérolas musicais pra todo mundo cantar e
esbanjar a brasilidade, a qual se nota a partir de um sacolejo das
cadeiras, um miudinho nos pés e um, dois, trezentos e noventa e três
sorrisos no ar que se cruzam, formando uma atmosfera indestrutível,
blindada ao mau agouro, à inveja, às tristezas, enfim, a verdadeira
energia que nos faz mais fortes para enfrentar a semana do batente
sistêmico da concorrência competitiva, doutrina infeliz que comanda o
planeta Terra.
Quatro horas e meia depois – e pra surpresa de todos, sem
as reclamações costumeiras da vizinha do lado enfurnada em seu sofá
vendo a vida passar na TV – a roda foi se desfazendo, claro que sem
antes executar umas duas dúzias de saideiras. Momento mágico,
adrenalinas e endorfinas se misturando à caipirinhas e brejas da última
fileira da geladeira praticamente vazia. Abraços de despedida breve,
papos- cabeças sobre a descriminalização da canabis e a confirmação da
existência – pelo mesmo jornalista tcheguevarista que houvera manchetado
o surdista – da tal tartaruga de 246 anos que habita as águas do lago
do Pinheirinho e que viu o Salomão Alves nascer sete anos antes da
comitiva de Pedro José Netto nos descobrir por aqui em 1.817 (Salomão
Alves, portanto, ostenta atualmente 202 anos bem vividos).
O Matheus e sua esposa tiveram um bocado de trabalho pra dar conta do
recado, a Casa Bersanetti – como já houvera acontecido com a Santa
Origem e Johnny Gula – se transformou na casa em que mais um pagode
verdadeiro se desenrolou, no estilo do famoso “Pagode do Vavá” de
Paulinho da Viola, a menos da ausência do “feijão da Vicentina”, a mais
pela alegria e amizade em que se desenvolveu, ajudando para esclarecer
pras novas gerações o sentido real da palavra pagode, quilômetros de
distância por não significar um gênero musical – inventado – e sim um
ritual em que todos nossos ancestrais ligados à música agradecem sua
permanência, a boa música nos ligando a eles, que com certeza se fizeram
presentes, em cada frase poética mais inspirada, em cada dedilhado do
violão, em cada batida mais enfezada dos tambores…E que venha a Casa
Lima, próximo dia 23, palco de mais um pagode. Até lá!