“É bom/Passar uma tarde em Itapoã/Ao sol
que arde em Itapoã/Ouvindo o mar de Itapoã/Falar de amor em Itapoã” são
os versos do belo refrão de uma das mais famosas canções do poetinha
Vinícius de Moraes em sua fase crepuscular da carreira – parceria com
Toquinho – quando já morava em Salvador, idos de 1970, em curso de seu
nono casamento com a soteropolitana artista plástica Gesse Gessy.
Lembro-me bem da primeira vez que estive em Salvador,
1984, acampado no Camping do Pituaçu – hoje local do estádio do Bahia –
na companhia de Marcelão Parreira e Arnaldinho Smirne. Adotamos a bela
praia de Piatã, devido aos vários quiosques de sapé, um dos quais de
propriedade do gaúcho Mário, o qual nos permitiu montar uma roda de
samba em sua barraca (viajávamos de camionete, em cuja boleia coberta
nos acompanhava surdo, cavaquinho, tamborim, pandeiro, agogô, chocalho),
roda essa que permitiu esticar a nossa estada por lá, já que tocávamos
todo dia e em troca nada pagávamos em bebida e comida.
Os fins de tarde na praia de Piatã eram apoteóticos, o
único quiosque repleto de gente era o nosso – para a felicidade do Mário
– e todos só davam linha quando o sol se punha, perto das 17h:30 (no
nordeste, com a baixa latitude, o sol se esconde mais rápido). Vizinha a
Piatã se encontra Itapoã. Invariavelmente fechávamos o repertório
cantando “Tarde em Itapoã”, só que na hora do refrão, trocávamos Itapoã
por Piatã, mesmo porque Itapoã é cheia de pedras, rochas graníticas
aflorando na praia, não há quiosques nem coqueiros, fatos combinados que
nos levavam a questionar o poetinha se, de fato, ele, abraçado ao seu
maior amigo, o cachorro engarrafado – whisky – não havia se enganado de
praia devido à sua graduação alcoólica não desprezível ao final de uma
tarde baiana.
Os tempos se passaram e, agora recentemente, tanto tempo
depois – e atestando, infelizmente, a triste decadência da orla de
Salvador, inclusive Piatã já sem seus quiosques devido lei municipal –
por uma das coincidências marcantes dessa vida, viemos a ficar alojados
num hotel pousada defronte ao famoso Farol de Itapoã…Esse hotel,
inclusive, já bastante antigo e elegante, havia anexado a área vizinha, a
qual ficamos sabendo se tratar da casa construída e habitada por
Vinícius de Moraes nos idos de 1974, durante o tempo de duração de seu
casamento com Gesse, três anos. Foi dessa casa que brotaram muitos
sambas, como “Meu pai oxalá”, “Samba pra Gesse” e “Tarde em Itapoã”.
Assim sendo, e mesmo não desprezando sua graduação etílica, viemos por
confirmar que o mestre da poesia não havia se enganado de praia…
Emocionados que estávamos durante a visitação à casa do
Vinícius – em cuja praça frontal homônima paira sua estátua de bronze
sentada com uma cadeira vazia ao lado aguardando turistas e admiradores
para uma foto, um bate-papo e, claro, uma pequena dose – já próximo de
dezoito horas, escurecendo os céus, ouvimos o que na hora, em desespero
de causa, preferi nomear de sinfonia do umbral, em função de seu volume
estratosférico e das ofensivas rimas tão contrastantes à inspiração e
memória de Vinícius, som este que partia de um automóvel estacionado nas
areias quase solitárias da praia de Itapoã. Aquela ensurdecedora
máquina só foi dar trégua quase uma hora depois, dentro já da jurisdição
do negro céu da noite…Imediatamente, como se fosse provisão divina, ao
fundo começamos a ouvir um piano virtuosíssimo, iniciando a genuína
sinfonia do local. Temas da era bossa-nova, entremeados com sambas de
Vinícius, cujo pioneiro daquela audição era exatamente “Tarde em
Itapoã”. O desapontamento havia ido embora, atestamos a beleza
preponderando e, contrastando a célebre parceria de Vinícius/Jobim,
começamos a entoar “Felicidade não tem fim, tristeza sim”…Itapoã e suas
tardes estavam preservadas…